quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Cozinha africana da Bahia e comida de santo
por Paulo Seidl

   Fazer oferenda de comidas ou animais sacrificados a deuses e santos não foi inovação dos seguidores do candomblé.  Já o faziam outros povos, como os incas, que ofertavam lhamas ao deus sol, os hindus, os egípcios e os europeus pagãos, apenas para mencionar o que seria início de uma longa lista.  Melhor exemplo, entretanto, é própria premissa do cristianismo, segundo a qual o sacrifício de Cristo na cruz teria sido um mal necessário para expiar os pecados do homem, não deixando de ser herança dos hebreus, que sacrificavam cordeiros imaculados a Jeová, de acordo com o apóstolo João, que anunciou o Cristo como o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Dessa forma, desde o século XVI, os escravos trazidos da África, em seu culto jejê-nagô, já faziam oferendas de pratos aos seus deuses, o que veio a ser futuramente a base das oferendas nos terreiros de candomblé, a partir do século XIX. 
   Mas comida votiva é, na verdade, apenas um dos expoentes da culinária baiana. Inserida em um maior contexto, o da ‘cozinha africana da Bahia’, ela divide espaço com a cozinha sertaneja e a cozinha praiana, tendo como berço os terreiros da cidade de São Salvador da Bahia. Terreiros, os quais, atualmente, são considerados responsáveis por salvaguardar uma culinária única, de caráter extremamente cultural, e que, infelizmente, está desaparecendo da farta e rica mesa dos baianos.
   A cozinha africana da Bahia, ao contrário do que se pode imaginar, não é uma cozinha exclusivamente africana, mas sim o fruto da miscigenação de três culturas, a saber, a portuguesa, a indígena e a própria africana.  É chamada de cozinha africana, entretanto, por ser de todas as cozinhas regionais, a que mais sofreu influência do continente negro, principalmente pelo uso de seus ingredientes vindos do outro lado do Atlântico, como o dendê, a pimenta malagueta e o quiabo, além do coco, inhame e temperos como o coentro.
   Curiosamente, outros estados do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que fizeram uso igual de escravos africanos (idem para outros países americanos, como Estados Unidos e Cuba), não desenvolveram uma gastronomia africana, como aconteceu na Bahia. Isso pode ser parcialmente explicado pela comercialização na Bahia do azeite de dendê, e posteriormente seu plantio e cultivo. 
   A literatura brasileira nos traz uma boa ilustração da cozinha africana da Bahia e conseqüentemente das comidas de santo. Jorge Amado, à guisa de exemplo, começa a descrevê-la timidamente em seus primeiros romances, como Jubiabá, para mais tarde tecer um verdadeiro compêndio dessa culinária, com receitas inclusive, em livros como Dona Flor e seus dois maridos, Tocaia Grande ou O sumiço da santa, e finalmente criar o protagonista Pedro Archanjo, de Tenda dos Milagres, um pai de santo que escreve um livro de culinária.
   Igualmente, Câmara Cascudo e Gabriel Soares de Souza, descreveram pratos baianos, como o caruru e o vatapá, em seus clássicos da literatura gastronômica. Livros específicos sobre a cozinha baiana, entretanto, só chegam aos leitores no século XX, com os 4 pilares dessa literatura – Manuel Quirino, Sodré Viana, Darwin Brandão e Hildegardes Vianna. Foram eles que acompanharam a transição da cozinha baiana das mãos das cunhãs, sob a supervisão das senhoras portuguesas, para as das mucamas, que africanizaram a comida baiana, com os ingredientes vindos da senzala, transformando esparregados em carurus, ensopados em moquecas e açordas em vatapás. 
   Abaixo, apresentam-se o descritivo e algumas informações sobre pratos da cozinha baiana africana, trazidos pelo Mestre Guilherme Radel. Muitos deles desapareceram da mesa do baiano. Outros, nem sequer são ofertados nos terreiros, tendendo à extinção.
  • Abará, ofertado a Obá e Oxum, é um bolinho de feijão cozido na folha da bananeira. Juntamente com o acarajé, é um dos raros pratos africanos de fato, tendo suas contrapartidas na Nigéria e em Angola, com os nomes de moin moin e abalá, respectivamente.
  • Acarajé, oferecido a Iansã, tem a mesma massa do abará, só que é frito em dendê. Conhecido na Nigéria e no Benin com o nome de akára, é tombado pelo Iphan. 
  • Arroz da Hauçá não é oferecido a santos, talvez por conter carne de charque.  Seu nome deriva dos Hauçás, povo sudanês.
  • Bobó, originalmente ofertado aos orixás com inhame e camarão seco, na mesa do baiano vem na versão com camarão fresco e fruta-pão ou mandioca em vez do inhame.
  • Caruru, também conhecido como amalá, é oferecido a Ibeji, que quer dizer gêmeos. No sincretismo brasileiro, é associado à festa de São Cosme e São Damião, em 27 de setembro, data de grandes festividades na Bahia.
  • Humulucu ou Omolocum, recebe também a alcunha de feijão de azeite e é oferecido a Ewá. Na versão com ovos, é o preferido de Oxum.
  • Aberém, para Oxumaré, é uma pasta de milho cozida na folha de bananeira, semelhante a uma pamonha.
  • Acaçá, bolinho de milho, oferecido a Oxalá.
  • Ado, farinha de milho com mel e dendê, é oferecido a Oxum.
  • Afurá, bebida feita a partir de massa de arroz fermentada, não é mais oferecida em terreiros.
  • Badofe, ensopado de fígado, coração e bofe de boi.
  • Bolas de inhame, ausentes na mesa baiana, são bolas preparadas a partir de uma massa de inhame.
  • Efó, semelhante ao caruru, é um preparo com folhas, como a taioba, castanha de caju, camarão seco, e o invariável dendê.
  • Ipetê é um preparo à base de inhame, camarão seco, cebola e pimenta, oferecido a Oxum.
  • Ochin-chim de galinha – galinha guisada com camarões, temperos e sementes de abóbora, é oferecido a vários orixás.
  • Olubó, espécie de pirão de mandioca, não é mais oferecido a orixás e nem servido nas mesas baianas.
  • Quibebe, espécie de sopa de abóbora, oferecida a Oxossi, é um dos raros pratos da cozinha africana da Bahia que não leva dendê nem pimenta.
  • Vatapá, um dos pratos mais emblemáticos da Cozinha Baiana, é presente nas mesas baianas pobres e ricas, bem como nos terreiros.  Podendo ser de galinha ou de peixe, é preparado segundo inúmeras receitas, tendo o pão, o fubá, o camarão e a castanha de caju e o dendê como um de seus ingredientes principais.

BIBLIOGRAFIA
Brandão, Darwin. A cozinha baiana. Livraria Universitária, Salvador, 1948
Cascudo, Luiz da Câmara. História da alimentação no Brasil. Companhia Editora nacional, 1967.
Costa, Paloma Jorge Amado. O livro de cozinha de Pedro Archanjo. Ed Maltese, São Paulo, 1994.
Querino, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1938.
Radel, Guilherme. A cozinha africana da Bahia. Salvador, 2006.
Soares de Souza, Gabriel. Notícia do Brasil. Livraria Martins Editora, São Paulo, s.d.
Vianna, Hildegardes. A cozinha baiana. Salvador, 1955.
Vianna, Sodré. Caderno de Xangô. Salvador, 1939.


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