Cozinha africana da Bahia e comida de santo
por Paulo Seidl
Fazer oferenda de comidas ou animais sacrificados a deuses e santos não
foi inovação dos seguidores do candomblé.
Já o faziam outros povos, como os incas, que ofertavam lhamas ao
deus sol, os hindus, os egípcios e os europeus pagãos, apenas para mencionar o
que seria início de uma longa lista. Melhor
exemplo, entretanto, é própria premissa do cristianismo, segundo a qual o
sacrifício de Cristo na cruz teria sido um mal necessário para expiar os
pecados do homem, não deixando de ser herança dos hebreus, que sacrificavam
cordeiros imaculados a Jeová, de acordo com o apóstolo João, que anunciou o Cristo
como o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Dessa forma, desde o século XVI, os escravos trazidos da África, em seu
culto jejê-nagô, já faziam oferendas de pratos aos seus deuses, o que veio a
ser futuramente a base das oferendas nos terreiros de candomblé, a partir do
século XIX.
Mas comida votiva é, na verdade, apenas um dos expoentes da culinária
baiana. Inserida em um maior contexto, o da ‘cozinha africana da Bahia’, ela
divide espaço com a cozinha sertaneja e a cozinha praiana, tendo como berço os
terreiros da cidade de São Salvador da Bahia. Terreiros, os quais, atualmente,
são considerados responsáveis por salvaguardar uma culinária única, de caráter
extremamente cultural, e que, infelizmente, está desaparecendo da farta e rica
mesa dos baianos.
A cozinha africana da Bahia, ao contrário do que se pode imaginar, não é
uma cozinha exclusivamente africana, mas sim o fruto da miscigenação de três
culturas, a saber, a portuguesa, a indígena e a própria africana. É chamada de cozinha africana, entretanto,
por ser de todas as cozinhas regionais, a que mais sofreu influência do
continente negro, principalmente pelo uso de seus ingredientes vindos do
outro lado do Atlântico, como o dendê, a pimenta malagueta e o quiabo, além do
coco, inhame e temperos como o coentro.
Curiosamente, outros estados do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais, que fizeram uso igual de escravos africanos (idem para outros
países americanos, como Estados Unidos e Cuba), não desenvolveram uma
gastronomia africana, como aconteceu na Bahia. Isso pode ser parcialmente
explicado pela comercialização na Bahia do azeite de dendê, e posteriormente
seu plantio e cultivo.
A literatura brasileira nos traz uma boa ilustração da cozinha africana
da Bahia e conseqüentemente das comidas de santo. Jorge Amado, à guisa de
exemplo, começa a descrevê-la timidamente em seus primeiros romances, como
Jubiabá, para mais tarde tecer um verdadeiro compêndio dessa culinária, com
receitas inclusive, em livros como Dona Flor e seus dois maridos, Tocaia
Grande ou O sumiço da santa, e finalmente criar o protagonista Pedro
Archanjo, de Tenda dos Milagres, um pai de santo que escreve um livro de
culinária.
Igualmente, Câmara Cascudo e Gabriel Soares de Souza, descreveram pratos baianos, como o caruru e o vatapá, em seus clássicos da literatura gastronômica.
Livros específicos sobre a cozinha baiana, entretanto, só chegam aos leitores
no século XX, com os 4 pilares dessa literatura – Manuel Quirino, Sodré Viana,
Darwin Brandão e Hildegardes Vianna. Foram eles que acompanharam a transição da
cozinha baiana das mãos das cunhãs, sob a supervisão das senhoras portuguesas,
para as das mucamas, que africanizaram a comida baiana, com os ingredientes
vindos da senzala, transformando esparregados em carurus, ensopados em moquecas
e açordas em vatapás.
Abaixo, apresentam-se o descritivo e algumas informações sobre pratos da
cozinha baiana africana, trazidos pelo Mestre Guilherme Radel. Muitos deles
desapareceram da mesa do baiano. Outros, nem sequer são ofertados nos
terreiros, tendendo à extinção.
- Abará, ofertado a Obá e Oxum, é um bolinho
de feijão cozido na folha da bananeira. Juntamente com o acarajé, é um dos
raros pratos africanos de fato, tendo suas contrapartidas na Nigéria e em
Angola, com os nomes de moin moin e abalá, respectivamente.
- Acarajé,
oferecido a Iansã, tem a mesma massa do abará, só que é frito em dendê.
Conhecido na Nigéria e no Benin com o nome de akára, é tombado pelo
Iphan.
- Arroz da
Hauçá não é oferecido a santos, talvez por conter carne de charque. Seu nome deriva dos Hauçás, povo
sudanês.
- Bobó,
originalmente ofertado aos orixás com inhame e camarão seco, na mesa do
baiano vem na versão com camarão fresco e fruta-pão ou mandioca em vez do
inhame.
- Caruru,
também conhecido como amalá, é oferecido a Ibeji, que quer dizer gêmeos.
No sincretismo brasileiro, é associado à festa de São Cosme e São Damião,
em 27 de setembro, data de grandes festividades na Bahia.
- Humulucu ou
Omolocum, recebe também a alcunha de feijão de azeite e é oferecido a Ewá.
Na versão com ovos, é o preferido de Oxum.
- Aberém, para
Oxumaré, é uma pasta de milho cozida na folha de bananeira, semelhante a
uma pamonha.
- Acaçá,
bolinho de milho, oferecido a Oxalá.
- Ado, farinha
de milho com mel e dendê, é oferecido a Oxum.
- Afurá, bebida
feita a partir de massa de arroz fermentada, não é mais oferecida em
terreiros.
- Badofe,
ensopado de fígado, coração e bofe de boi.
- Bolas de
inhame, ausentes na mesa baiana, são bolas preparadas a partir de uma
massa de inhame.
- Efó,
semelhante ao caruru, é um preparo com folhas, como a taioba, castanha de
caju, camarão seco, e o invariável dendê.
- Ipetê é um
preparo à base de inhame, camarão seco, cebola e pimenta, oferecido a
Oxum.
- Ochin-chim de
galinha – galinha guisada com camarões, temperos e sementes de abóbora, é
oferecido a vários orixás.
- Olubó,
espécie de pirão de mandioca, não é mais oferecido a orixás e nem servido
nas mesas baianas.
- Quibebe,
espécie de sopa de abóbora, oferecida a Oxossi, é um dos raros pratos da
cozinha africana da Bahia que não leva dendê nem pimenta.
- Vatapá, um
dos pratos mais emblemáticos da Cozinha Baiana, é presente nas mesas
baianas pobres e ricas, bem como nos terreiros. Podendo ser de galinha ou de peixe, é
preparado segundo inúmeras receitas, tendo o pão, o fubá, o camarão e a
castanha de caju e o dendê como um de seus ingredientes principais.
BIBLIOGRAFIA
Brandão, Darwin. A cozinha baiana. Livraria Universitária, Salvador,
1948
Cascudo, Luiz da Câmara. História da alimentação no Brasil. Companhia
Editora nacional, 1967.
Costa, Paloma Jorge Amado. O livro de cozinha de Pedro Archanjo. Ed
Maltese, São Paulo, 1994.
Querino, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1938.
Radel, Guilherme. A cozinha africana da Bahia. Salvador, 2006.
Soares de Souza, Gabriel. Notícia do Brasil. Livraria Martins Editora,
São Paulo, s.d.
Vianna, Hildegardes. A cozinha baiana. Salvador, 1955.
Vianna, Sodré. Caderno de Xangô. Salvador, 1939.
Crédito da ilustração https://catracalivre.com.br/salvador/dica-digital/indicacao/guia-afetivo-da-culinaria-de-rua-baiana-ganha-versao-online/
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A origem das oferendas, interessante. Boa sacada ! Abrss
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