Blog de um amante da cozinha, pesquisador de hábitos alimentares e cozinheiro quando possível.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2016
A deliciosa cozinha marroquina
MEP do chá
Cores,
sabores, texturas, temperos, tagines, tagines, tagines... eis um apanhado muito
básico da cozinha desse lindo país, um lugar caótico, exuberante, machista,
interessante, paradoxal, caliente.
Não, não estou falando do Brasil, mas do Marrocos, um país localizado no norte
da África, ali do lado da Espanha, encravado entre o deserto Saara, o mar
Mediterrâneo e o oceano Atlântico.
A
cozinha do Marrocos se encaixa perfeitamente no perfil da dieta mediterrânea, o
que pode querer dizer muito, mas aqui me refiro particularmente ao frescor dos
legumes, das frutas e das ervas, do pão onipresente nas refeições ou do azeite
de oliva que besunta a comida. Viajar pelo país, ainda que logisticamente
difícil, é um prazer tanto para o palato como para os outros sentidos.
Salada marroquina com pão e suco de laranja espremido na hora
Café da manhã - tirando as azeitonas, igual ao nosso
Afinal
o que come esse povo mais berbere do que árabe, de crença islamita, de herança
africana? Começo este tour gastronômico
pela tagine, uma panela rasa de tampa
cônica, feita de cerâmica, que se encontra em qualquer esquina (à venda como
artesanato) ou nas cozinhas (como utensílio doméstico) do Marrocos. Para a
minha decepção, pude constatar que nem todos os pratos denominados tagines são de fato feitos em uma panela
tagine. É possível que o seu tagine de frango e ameixas tenha sido
feito em uma panela convencional, para depois ser meramente apresentado na tagine. Como saber? Desconfie de uma
tagine extremamente decorada e limpinha, acredite naquela meio desgastada com
fundo queimado e comida grudada. Sim, com ‘pegado’ mesmo, como dizem nossos
nordestinos. Tagine que não tem
pegado é para inglês ver (ou francês, ou japonês, ou sei lá).
Minha primeira refeição
Cacho de tâmaras secando ao sol
Estou
arbitrariamente atribuindo o gênero masculino ao pratotagine e o feminino
à panelatagine, para não perder a mania de ser didático. E o que é feito
nela? Seu conteúdo é um guisado, normalmente com poucos pedaços de carne, geralmente
frango ou cordeiro, e legumes, como batata ou cenoura, em um caldo espesso
bastante condimentado. Esse molho é feito com tomates, cebolas e temperos como
canela, cominho, cardamomo, etc. Frutas secas, como ameixa ou tâmara, dão-lhe
um sabor adocicado e o picles de limão (siciliano, o amarelo), um toque
agridoce. Pode ser finalizado com Has-el-Ranout,
uma mistura de temperos semelhante ao masala
indiano, mas o gosto de cominho predomina.
O tagine, entretanto, nunca é o primeiro
prato. Talvez por influência da França, de cujo país o Marrocos foi um
protetorado por anos, eles gostem de um serviço à la française, com vários pratos sendo servidos em sequência.
Pode-se começar por uma sopa, em geral vegetariana, com legumes, leguminosas e
cereais. As sopas, que são igualmente condimentadas e espessas, são também
vendidas na rua por preço irrisório, algo como quatro dirhams (0,4 euros). São
invariavelmente acompanhadas por pão.
Tajine autêntico, servido na rua, um dos melhores que comi
Em
seguida vem a salada, que também é condimentada, e quase sempre leva coentro
fresco e cominho e já vem temperada com azeite e limão. Naturalmente, há vários
tipos, mas a mais comum é a salada marroquina, um equivalente ao nosso
vinagrete de churrasco, com tomate, cebola, pimentão verde e as indefectíveis e
deliciosas azeitonas. São invariavelmente acompanhadas por pão.
Finalmente
serve-se o prato principal, que pode ser o tagine,
mas também o cuscuz marroquino. Aqui, coloco o acento na maneira como o cereal
é preparado. Ao contrário do ‘cuscuz marroquino’ que se encontra nos
supermercados brasileiros e europeus, que é aquele grão amarelinho semipronto,
o verdadeiro cuscuz marroquino é artesanal e está longe de ser um prato rápido.
Trata-se de uma farinha de sêmola com granulação maior, sobre a qual se borrifa
água e mais farinha de sêmola, desta vez bem fina, fazendo-se subseqüentes camadas
de farinha que vão aos poucos se aderindo ao grão. Tudo isso é feito pelas
hábeis mãos das mulheres marroquinas sobre uma mesa ou tabuleiro, cujo processo
recebe o nome de ‘rolar o cuscuz’.
Sopa de lentilha, cenoura, batata, grãos e temperos
Uma
vez ‘rolado’, o cuscuz deve descansar para ser finalmente cozido no vapor, por
pelo menos duas horas, nas cuscuzeiras que conhecemos tão bem. O cereal é
servido com um guisado de carne e legumes, que leva os mesmos temperos
descritos acima, e pode ser feito na panela abaixo da cuscuzeira. As duas partes
dessa são normalmente vedadas com um pano de prato bem apertado para garantir
que todo o vapor que emana do guisado cozinhe o cuscuz. É invariavelmente acompanhado
por pão.
Comida
marroquina não é marroquina se não for servida ou seguida de chá de menta. É chá
verde importado da China, com menta fresca, quase sempre já adocicado e feito
com um charme especial. Primeiramente, o chá fica em infusão em um bule típico,
decorado com as gravuras tradicionais. Após a infusão, despeja-se o chá nos
copinhos (semelhante aos nossos copos de pinga) de uma altura considerável, de
um a dois palmos, para que o chá faça espuma. Chá sem espuma não é chá. Todo
mundo faz o chá dessa maneira.
Há
ainda os doces clássicos da confeitaria marroquina e também um forte apego àquela
francesa. Os marroquinos são docinhos de massa folhada ou sablée com recheio de frutas secas e castanhas. Na praça Djma El
Fnar, que é o grande centro de atrações dentro da Medina de Marrakech e
declarada Patrimônio Universal pela UNESCO, esses docinhos são vendidos por
garotos em carrinhos empurrados à mão. Na praça também vendem-se, junto a
centenas de ambulantes, sucos cítricos espremidos na hora, um deleite para um
brasileiro vivendo na Europa.
Banhado
por dois mares diferentes, o Marrocos não poderia deixar de servir peixes e
frutos do mar. Consumi-os bem frescos, tanto na famosa Praça como no porto de
Essaouira, uma belíssima cidade murada na costa Atlântica, também Patrimônio da
Humanidade. Fritos ou grelhados, foram camarões, lulas, caranguejos e vários
tipos de peixes. Para acompanhar, um molhinho à base de tomate e rodelas de
limão siciliano. São invariavelmente servidos com pão.
Curiosamente,
embora o azeite reine entre as matérias gordurosas, não é costume levá-lo à
mesa, e os garçons sempre estranhavam quando eu pedia azeite. Demoravam para
trazê-lo, visto que claramente não contavam com um galeteiro. Vinha à mesa em
uma vasilhinha com uma colher. Outros exemplos de gordura são a manteiga salgada
de ovelha e o óleo de argham, uma preciosidade da cozinha e uma panacéia da
fitoterapia e perfumaria. Com gosto de avelã e de café, lembra nosso óleo de
babaçu.
Pão comercializado na rua - cena comum
O
leitor deve ter percebido que, no Marrocos, como na maioria dos países
mediterrâneos, toda comida é acompanhada por pão. Foi aí uma grata surpresa. Como
professor de cozinha, dediquei diversas aulas a esse país, inclusive na
pós-graduação, quando inseri a Cozinha Marroquina no contexto de Cozinha
Mediterrânea. Fiz, pois, o tal pão, meio às cegas, sem ter certeza de que a
receita que eu havia retirado de um excelente livro que ganhei de minha filha iria
ou não funcionar. Deu certo! O pão que fiz no Brasil com uma mistura de
farinhas (de trigo e de sêmola) chegou bem perto dos deliciosos pães que comi
no café, almoço e jantar durante minha breve estadia nesse delicioso país.
Não
pude deixar de perceber certa semelhança com nossa cozinha. Embora o tempero
seja completamente diferente, as técnicas são bastante parecidas, já que a
maioria dos preparos são guisados. A mais, o frescor dos legumes e das frutas,
além da grande presença de leguminosas, como feijões ou lentilhas e os sucos
espremidos na hora chegaram a dar saudades. Mas é certo que a cozinha
marroquina tem suas particularidades, sendo de excelente sabor e frescor. Uma
comida sã, saborosa e honesta que vale a pena experimentar.
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