A cozinha brasileira não
existe
Peça a um brasileiro nascido e criado no país que defina a cozinha
brasileira, não com os meros exemplos de pratos consumidos em nossas casas ou
restaurantes, mas em uma ordem mais técnica e formal, talvez acadêmica, para
chegar à conclusão proposta no titulo deste artigo, de que a cozinha brasileira
não existe.
E o arroz com feijão que comemos nos restaurantes a quilo,
em botecos de esquina ou na casa da avó? Um ingrediente ou um prato não deveria
ser a definição de uma cozinha. Ao considerar-se que a cozinha é um intrínseco
conjunto de relações sociais, mais do que o simples ato de se nutrir de um
alimento, nossas memórias gustativas e nosso imaginário sobrepõem-se aos
ingredientes e as receitas que consumimos desde tenra infância.
Portanto, a definição do que é a cozinha brasileira seria
dada da maneira mais diversa pelo brasileiro nordestino, nortista ou sulista,
insistindo na idéia segundo a qual não existe uma cozinha que nos unifique. Não
há na nossa gastronomia um paralelo ao esporte, como o futebol, que é marca
registrada e paixão dos brasileiros. Os
regionalismos do Brasil são tão fortemente arraigados à cultura gastronômica,
que, ao cruzar o país de norte a sul, tem-se a impressão, pelo menos na hora do
almoço, de se estar em um país completamente diferente. Longe de ser um problema,
tal diferença nos enriquece, nos fortalece.
Tomemos um exemplo de um viajante imaginário, o Sr. Santos,
paulista, que desembarca em Belém, e que nas suas primeiras andanças pelo
mercado Ver-o-Peso decide experimentar uma sopa, servida na rua. Estranheza 1:
em São Paulo não se toma sopa na rua. Estranheza 2: cadê a colher? Só tem um palito
de dente espetado nos camarões secos boiando em um liquido amarelo. Estranheza
3: ela é servida em uma cuia de cabaça, com desenhos tribais. Estranheza 4: o
que é essa substância viscosa e transparente com o que a ambulante finaliza o
preparo?
O Sr. Santos ainda nem experimentou a sopa e já se deparou com
4 diferenças culturais brutais. O que ele vai achar do sabor acido do tucupi,
da consistência viscosa da goma ou do sabor elétrico do jambu vai depender unicamente
de suas experiências sensoriais individuais, seus gostos e desgostos.
E provável que o Sr. Santos não sofra de neofobia, a aversão
a novidades, caso contrário teria passado batido pela vendedora. E provável que
ele não saiba o que fazer com as cabeças dos camarões, ou que estranhe a sensação
de lamber uma pilha de 9 volts ao morder as florzinhas amarelas que flutuam junto
aos camarões. Mas o fato é que a experiência cultural que ele vivenciou ao experimentar
uma cuia de tacacá no calor de 35 graus reflete que não existe uma gastronomia brasileira
única, senão um conjunto de cozinhas regionais espalhadas pelos quatro cantos
do Brasil.
Em 2010, a França conseguiu que sua cozinha fosse inscrita
na UNESCO como patrimônio cultural imaterial da humanidade, assim como a roda
de capoeira ou o frevo do carnaval de Recife. Minto, não a cozinha francesa,
que, assim como a brasileira, não existe, mas senão a ‘refeição gastronômica
dos franceses’. Não se tratam de receitas como o cassoulet ou o coq au vin,
mas sim o bem-estar em volta da mesa, o bem-comer, o bem-beber. Cozinhar e
comer conjuntamente, entre amigos ou família, incentivar o consumo de alimentos
do terroir, respeitar as tradições
culinárias e, sobretudo, experimentar a riqueza e a variedade da cozinha são
exemplos do que definem a refeição dos franceses.
Esses conceitos foram baseados no fato que os franceses de
Paris, Lyon ou Toulouse não compartilham uma cozinha única, mas possuem uma
cultura alimentar rica e definida. 95,2 por
cento dos franceses admitem que a gastronomia faz parte de sua identidade
cultural. Essa identidade foi desenvolvida ao longo dos séculos, com o trabalho
dos produtores, que protegem seus produtos regionais, dos cozinheiros, que tem
status de artistas no país, e finalmente do povo, que se orgulha de sua comida.
O Brasil, que engatinha em todos os aspectos citados acima,
pode aprender uma valiosa lição com os franceses. Nossa gastronomia é
riquíssima, nossa cozinha e saudável e saborosa, e arrisco a afirmar que nenhum
outro país possui a variedade de insumos da que dispomos em nossa terra, muitos
dos quais endêmicos. No entanto, sem uma política de incentivo ao pequeno produtor,
sem diretrizes que salvaguardem nossas riquezas alimentares, nossa gastronomia,
que é uma preciosa herança cultural, será relegada ao esquecimento dos livros
de receita.
Nesse sentido, a visionária iniciativa do projeto ‘Eu como
cultura’, que pretende aprovar um projeto de lei para que a gastronomia
brasileira seja oficialmente reconhecida como manifestação cultural, deu um
passo de gigante. É importante que nós brasileiros, portanto, valorizemos nossa
comida, sob todas as suas expressões locais e regionais, como um bem cultural
intangível e como parte inerente de nossa cultura e nosso orgulho.
Paulo Seidl é
brasileiro, cozinheiro e pesquisador
em história e cultura
da alimentação
na Universidade de
Tours, França